Pense, reflita e aja!

A cruzada para negar o aquecimento global

Por Ladislau Dowbor *

Não há dúvidas sobre o aquecimento global, nem sobre o peso das
atividades humanas na sua geração. No entanto, depois de dois anos de
uma gigantesca campanha de mídia, envolvendo também a criação de ONGs
fajutas e de movimentos aparentemente "grass-root", portanto
"espontâneas e comunitárias", e sobre tudo listagens de cientístas
"céticos" visando dar impressão de "quantidade", temos resultados, e
para os grupos do petróleo, do carvão e semelhantes, terá valido a pena.
Segundo a revista britânica The Economist, a proporção de americanos que
achavam existir evidências sólidas de aumento das temperaturas globais
caiu de 71% em abril de 2008 para 57% em outubro de 2009 (Carta Capital,
16/12/2009, página 48)

O estudo de James Hoggan (Climate cover-up: The cruzade to deny global
warming) não é sobre o clima, mas sobre comunicação, e consiste
essencialmente em mapear como a campanha foi montada e como hoje
funciona. A articulação é poderosa, envolvendo instituições
conservadoras como o George C. Marshall Institute, o American Enterprise
Institute (AEI), o Information Council for Environment (ICE), o Fraser
Institute, o Competitive Enterprise Institute (CEI), o Heartland
Institute, e evidentemente o American Petroleum Institute (API) e o
American Coalition for Clean Coal Electricity (ACCCE), além do Hawthorne
Group e tantos outros. Sempre petróleo, carvão, produtores de carros,
muitos republicanos e a direita religiosa.

Os grandes grupos corporativos aparecem mais discretamente, com exceção
da ExxonMobil que inundou com dinheiro o mercado de consultoria e de
comunicação. Este "inundou", naturalmente, é um conceito relativo: são
centenas de milhões de dólares, mas New Scientist lembra que "as
empresas de petróleo têm vastos lucros. Só a ExxonMobil lucrou US$ 45
bilhões em 2008. Em um mundo sano, certamente encontraríamos uma maneira
de desviar um pouco deste dinheiro para resolver os problemas que o
próprio petróleo está gerando. A questão é: estamos vivendo num mundo
sano?" (NS, 5/12/2010, p. 5) Não custa lembrar que estas empresas não
"produzem" petróleo, e sim extraem e comercializam um bem herdado da
natureza que está acabando.

Em termos de personagens, encontraremos os das causas conservadoras e
muitos personagens "flexíveis", como Frank Luntz, Christopher Walker,
Fred Singer, Patrick Michaels, Arthur Robinson, Steven Milloy, Benny
Peiser e numerosos outros, além da eterna estrela do "contra", o
dinamarquês Lomborg, que graças à sua disponibilidade anti-clima ganha
financiamentos para incessantes palestras.

Profissionais das relações públicas (sim, o nome é este) estão sempre
presentes. Hoggan, o autor deste estudo, é um profissional de relações
públicas e conhece profundamente como funciona a indústria da construção
e da destruição das reputações de pessoas ou de causas. Isso o levou a
fazer o presente levantamento detalhado de como se estrutura, com o
impressionante poder das tecnologias modernas de comunicação, a
manipulação da opinião pública. Independentemente da causa, no caso o
drama do aquecimento global, o que é muito interessante no livro é
entender esta indústria da desinformação.

Naomi Oreskes organizou uma meta-pesquisa, com o buscador "mudança
climática global", e limitada a artigos revistos por pares (peer
review). Encontrou 928 artigos, nenhum colocando dúvidas sobre a
realidade do processo climático. Nos jornais, no entanto, comentando a
pesquisa, 53% dos artigos, buscaram ouvir "os dois lados", e colocaram
de maneira equilibrada opiniões de contestadores. Zero porcento de
artigos científicos contestadores sobre o processo climático em si, mas
nos jornais aparecia como "um tema em discussão". O que era o objetivo.
O tema está em discussão, afirmam gravemente os grandes grupos geradores
do aquecimento (não diretamente, sempre por meio de listas de livre
inscrição), portanto o assunto "é controverso". Os "céticos" passam a se
apresentar não como contestadores do fenômeno, mas como os que têm uma
visão equilibrada, sem extremismos, portanto acreditam que talvez haja
um problema, mas temos de ser ponderados, e adiar decisões.

No caso de Naomi Oreskes, é curioso, pois um Dr. Benny Peiser, professor
de educação física (esporte mesmo, não física), realizou uma pesquisa
sobre "mudança climática" (e não "mudança climática global") e
apresentou uma lista não de 928 artigos, mas de mais de 12 mil.
Portanto, os 928 representariam apenas uma pequena parcela das opiniões.
Os jornais, devidamente estimulados (a Fox em particular, naturalmente),
fizeram alarde. Faltava demonstrar que os 12 mil tinham opinião
contrária. Pressionado por revistas científicas que se recusavam a
publicar o seu artigo, Peiser conseguiu localizar 34 artigos "que
rejeitam ou duvidam da visão de que as atividades humanas são a
principal causa do aquecimento observado nos últimos 50 anos".
Pressionado ainda para mostrar os artigos e os argumentos científicos em
artigos "peer reviewed", Peiser finalmente chegou a um artigo científico
de contestação. Não era revisto por pares, e foi publicado na American
Association of Petroleum Geologists. (102)

Tudo isto, evidentemente, amplamente divulgado, em particular por redes
de institutos empresariais conservadores, utilizando em parte os mesmos
grupos de relações públicas utilizados nas campanhas de caça-voto dos
republicanos, e apoiados nas tecnologias de ampla divulgação como
youtube. O resultado de tudo? Frente a tanta celeuma, os grupos
interessados puderam passar a dar entrevistas "equilibradas", pois
estaria claro que "há controvérsias". Que era o único objetivo da
campanha. Não de negar o inegável, mas de dar a entender que as pessoas
comedidas, equilibradas, não vão fazer nada, e muito menos pressionar os
agentes do aquecimento global.

O livro é muito instrutivo para quem lida com comunicação, com teoria
dos lobbies, com manipulação política. O próprio Hoggan menciona como é
cansativo, a cada vez que aparece um cientista de peso mencionado no
grupo "cético", fazer circular a carta de denegação do cientista, ou
destrinchar uma lista de milhares de "opositores" para ver se há no meio
alguém que realmente tenha feito alguma pesquisa sobre a única coisa
finalmente relevante, que não é a "opinião", e sim dados científicos
novos que provem algo diferente. E depois tentar fazer circular a
informação de que a "notícia" afinal não era notícia, isto numa mídia
onde as corporações financiam a publicidade.

Uma pérola entre os argumentos e uma das mais utilizadas: "Como os
cientistas dizem que podem prever o clima dentro de 50 anos se não são
capazes de prever a chuva de amanhã". Como se meteorologia e estudos
climáticos fossem da mesma área. Um britânico pode não saber se vai
nevar amanhã, mas sabe perfeitamente prever que vai chegar o inverno e o
frio correspondente, e não hesita em comprar um casaco. Mas o argumento
pega e se apoia numa fragilidade que é de todos nós: se nos dão um
argumento que confirma a opinião que já estávamos propensos a ter,
qualquer estribo vale.

O estudo bem poderia ser traduzido e utilizado para os nossos próprios
problemas, como por exemplo o peso da bancada ruralista na opinião
pública, ou as campanhas orquestradas pela Febraban, ou ainda a campanha
contra a proibição de armas de fogo individuais, estribadas no "direito
de se defender" e até na "liberdade". Nos Estados Unidos, temos
precedentes interessantes e igualmente desastrosos tanto no caso das
armas, como na batalha das grandes empresas de saúde privada aliadas com
o "Big Pharma" para tentar travar o direito de acesso a serviços de
saúde, sem falar das gigantescas campanhas das empresas de cigarros.

O último livro de Robert Reich, aliás, Supercapitalim, também trata
desta apropriação dos processos políticos pelas corporações. O filme O
Informante mostra como isto se deu com a indústria do cigarro, enquanto
The Corporation explicita o mecanismo de maneira ampla. Marcia Angell
fez um excelente estudo dos procedimentos equivalentes na indústria
farmacêutica (em português, A verdade sobre os laboratórios
farmacêuticos). A própria desinformação se transformou numa indústria. É
a indústria da opinião pública.
No caso da mudança climática, como qualificar a dimensão ética do que
constitui uma clara compra de opiniões? Ou os ataques impressionantes
das empresas de advocacia das corporações, que processam qualquer pessoa
que ouse sugerir que uma opinião poderia envolver não a verdade mas
interesses corporativos? O liberalismo tem uma concepção curiosa da
liberdade.

* Ladislau Dowbor, é doutor em Ciências Econômicas pela Escola Central
de Planejamento e Estatística de Varsóvia, professor titular da PUC de
São Paulo e da UMESP, e consultor de diversas agências das Nações
Unidas. É autor de "Democracia Econômica", "A Reprodução Social", "O
Mosaico Partido", pela editora Vozes, além de "O que Acontece com o
Trabalho?" (Ed. Senac) e co-organizador da coletânea "Economia Social no
Brasil" (ed. Senac) Seus numerosos trabalhos sobre planejamento
econômico e social estão disponíveis no site http://dowbor.org´
;


(Envolverde/O autor)

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